quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Medo

Ajoelhou-se novamente na pedra gelada a beira do rio e colocou ao seu lado sobre a terra úmida a bacia vazia. Era a terceira vez naquele dia que estava ali. As mãos e os braços ainda estavam doloridos pelas vezes anteriores que carregou a bacia cheia do rio até sua casa. E os olhos ainda estavam marejados de lágrimas que não conseguia conter. Usou o dorso da mão para afastar com raiva as mechas de cabelo que grudavam no seu rosto e secou as últimas lágrimas que caíram.
Respirando fundo olhou seu reflexo no rio. Naquela área o rio corria lento, permitindo que o reflexo lhe mostrasse os seus olhos vermelhos e inchados. Amaldiçoou mentalmente a mãe e os irmãos, principalmente os irmãos. A culpa de ser obrigada a buscar a água para a casa era deles. Sentiu as lágrimas brotarem novamente e olhou para cima num ato desesperado de impedi-las de cair.
Ficou assim por um tempo tentado enxergar o céu. Era meio difícil de vê-lo ali. As árvores se fechavam sob o rio como se quisessem protegê-lo de algo. Era um lugar bonito. O verde vivo da mata misturado com as flores vermelhas que nasciam nos troncos das árvores perto da margem formava uma das paisagens favoritas de Dafne. Pequenas fontes de luz saiam das fendas que os galhos deixavam, permitindo que o sol iluminasse belamente o ambiente.
Admirar o lugar evitou que ás lágrimas caíssem e deu um novo animo à menina. Sorriu sozinha. Não choraria mais por culpa deles. Não mostraria mais sua fraqueza. Pegou a bacia do seu lado e mergulhou-a no rio bem acima de seu reflexo, desfazendo-o.
A água estava gelada. Era normal que pela manhã a água estivesse gelada, mas agora ela estava muito mais do que nas primeiras horas do dia, quando ela tinha ido antes.
Um calafrio percorreu sua espinha. Levantou-se de súbito com um medo avassalador. Tinha que sair dali, não tinha ideia do que a deixava tão assustada, só sabia que não iria ficar para descobrir. Enquanto a bacia tocava o fundo do rio, Dafne corria.
Correu. Passou pela trilha que levava para a estrada aos tropeços, mas quanto mais se afastava mais o medo ia diminuindo. Quando chegou ao fim da trilha olhou para trás e lembrou da bacia que havia deixado no rio. Sua mãe não gostaria disso, não mesmo. Suspirou e voltou a correr, desejando que não houvesse nada dentro da mata que cercava a velha estrada de terra. 
Dafne tinha dez anos. Uma menina cheia de vida, com uma pele bastante clara para quem vivia no campo. Suas mãos e pés eram pequenos, mas bastantes machucados devido aos trabalhos que tinha que fazer em casa. Seus olhos eram grandes e marcantes, de um castanho escuro que mostravam claramente a tristeza que sentia. Os cabelos, também castanhos, caiam longos e ondulados até sua cintura. Tinha um nariz pequeno e arrebitado e lábios rosados e pouco carnudos. Vivia com a mãe e os três irmãos em uma casinha simples deslocada demais da única cidade que conhecia. O pai tinha morrido há algum tempo. Não chegou a conhecê-lo.
Era graças aos seus irmãos que Dafne estava sempre em apuros. Costumavam a usar como bode expiatório. Destruíam coisas, matavam pequenos animais e traziam para casa, aprontavam, e sempre conseguiam fazer com que, aos olhos da mãe, a culpa fosse dela. Então Dafne estava sempre de castigo. Muitas vezes sendo obrigada a fazer trabalhos pesados demais para uma criança, como ir buscar água no rio.
Ainda estava correndo quando alguém barrou seu caminho. Era Chad. Seu irmão mais velho tinha dezesseis anos, e, para Dafne, era um gigante. Tinha cerca de três vezes o tamanho dela, chegando a ser maior que a mãe. E além de ser grande de altura era extremamente forte. Era comum ver a mãe remendando as roupas dele, pois ele sempre arrumava um jeito de rasgar-las ou seus próprios músculos não cabiam mais nelas. Os cabelos dele estavam curtos, assim como de seus outros irmãos, mas eram tão castanhos quanto os dela. Os olhos, também parecidos com os dela, só mudavam em contraste com as sobrancelhas grossas dele e a pele dourada de quem vivia no sol. Mas Dafne só pensou em uma coisa quando o notou: Era o culpado por ela estar buscando água.
– Chad! Mano! Eu estava pegando água quando... – começou a se explicar.
– E pelo visto vai ter que voltar, não? – interferiu ele, com um sorriso maldoso na cara.
– Voltar? Mas, Chad! A água estava tão fria e eu achei... Bom... Eu senti um medo...
– Medo de água fria? – perguntou ele com uma sobrancelha levantada.
– Não da água. Eu tive a impressão...
– Não quero saber! A mãe vai ficar uma fera se não voltares com a água! Anda! Anda! E volte com uma desculpa melhor pela demora! – Chad falava enquanto a empurrava bruscamente para trás.
Dafne ficou sem fala, não queria voltar. Ouvindo Chad falar pareceu mesmo que era tudo tolice, mas mesmo assim, só de pensar em voltar sentiu o estomago embrulhar. Sem poder conter, as lágrimas voltaram a cair.
Chad revirou os olhos. Normalmente ele não ligava para o pranto dela, mas achava-o irritante. Novamente Dafne foi empurrada, dessa vez tão forte que caiu no chão. Mas ela foi esperta o bastante para não reclamar. Ficou um tempo no chão observando o irmão na estrada até perdê-lo de vista. Então se levantou, deu alguns tapas na roupa pra tirar um pouco da sujeira e voltou para casa silenciosamente. Não podia ser vista antes de Chad voltar.
Segui na estrada atenta, se Chad estava em campo aberto seus irmãos também poderiam estar. E poderia haver algum viajante por ali, era muito improvável, mas poderia acontecer.
Desde que se lembrava sua mãe sempre deixou bem claro que não poderiam ser vistos. Nunca soube realmente o porquê, mas sua mãe dizia que era porque os homens eram maus, e deveriam ser evitados. Alguns anos atrás a curiosidade de Dafne tinha superado o medo da mãe e resolveu aventurar-se até a cidade. Chegou a ver algumas pessoas, mas não chegou a entrar na cidade, sua mãe a pegou antes. Foi a maior surra que tinha levado até então. E com o passar dos últimos anos começou a acreditar na mãe sobre a maldade dos homens, principalmente graças à maldade de seus irmãos.
Quando finalmente chegou à frente das duas árvores com espinhos hesitou. A estrada de terra seguia adiante. Qualquer pessoa sem ser um deles seguiria por ela sem nem olhar para os lados. Talvez algum até parasse e admirasse as duas grandes árvores com espinhos que se misturavam na mata virgem na beira da estrada, mas era improvável que alguém escolheria entrar por elas e acampar em alguma clareira por ali. Mas Dafne não era qualquer pessoa. Então respirou fundo e entrou sorrateiramente entre as duas grandes árvores espinhosas.  
Para Dafne aquilo era muito normal. Estava longe de ser a primeira vez que precisava chegar sem ser vista em casa. Então continuou se embrenhando na mata, sem fazer qualquer ruído. Logo encontrou a trilha que a levava direto para sua casa, mas não seguiu por ela, manteve-se entre as plantas, e essas como em protesto machucavam-lhe a pele com arranhões de galhos que não conseguia evitar e puxavam e prendiam-se em seus cabelos.  
Depois de um determinado tempo caminhando pode ouvir barulhos e não demorou muito a ver Alex e Daniel. Ambos estavam brigando ou brincando, ela nunca sabia a diferença, na frente de casa. Os dois lembravam muito Chad, só eram menores. Alex tinha quatorze anos e Daniel estava com doze. Como estavam muito ocupados se matando Dafne não teve problemas em passar por eles sem ser notada.
Entrou em casa cautelosa. Sabia que a mãe não estava ali, mas preferiu não arriscar. Andou com passos incrivelmente silenciosos, como tinha aprendido a fazer com os irmãos. Passou reto pela cozinha, sala, o quarto dos irmãos e o quarto da mãe.  O seu quarto era o ultimo cômodo da casa. Entrou nele, fechou a porta com o trinco e escorregou nela até o chão. Ali ficou.
Sozinha. Era assim que se sentia sempre. Não tinha amigos e os irmãos pareciam ter um ódio profundo dela. A mãe estava sempre fora, e mesmo quando estava em casa era só para lhe xingar e dar ordens.  Logo sua vida se baseava a ficar naquela casinha e cumprir ordens. Para seus irmãos era diferente. Eles tinham uns aos outros pra brincar e a ela pra maltratar.
No dia anterior mesmo haviam roubado a única boneca que ela tinha e ainda falaram que deixaram na floresta. Dafne não ficava sem a boneca e mesmo sendo noite se embrenhou na mata fechada. Não sabia se tinha passado horas ou minutos lá, só sabia que estava com medo do lugar e desesperada pela boneca. E quando notou Chad estava ao seu lado, lhe puxando pela orelha e levando-a até sua mãe. Depois dessa aventura tudo que ganhou foi uma surra e mais trabalhos para fazer. E não teve a boneca de volta.
Mas agora não pensava na boneca. O medo que tinha sentido no dia anterior parecia até ridículo perto do que sentiu hoje. Por que saiu correndo daquele jeito? O que fez a água ficar tão fria? O medo foi da água?
Ficou um bom tempo pensando nessas perguntas, tempo demais. Ouviu a mãe chegar em casa e ir pra cozinha. Ouviu Alex e Daniel entrarem logo depois. E o tempo passou. E a pergunta chegou.
– Onde estão Chad e Dafne? – Perguntou a mãe.
Chad? Onde estava Chad? Ele já devia ter chegado. Passos soaram dentro de casa. E estavam se dirigindo ao quarto dela...
Agora a o medo foi diferente, se descobrissem que ela estava em casa iam perguntar pela água e se perguntarem pela água iam saber sobre Chad, aí ela seria culpada de novo.
Não pensou duas vezes. Saiu pela janela antes que abrissem a porta. Ia achar Chad antes que a achassem. E descobrir porque ele não voltou. Mas para isso teria que voltar ao lago. Gelou. Mas continuou correndo.


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